SINOPSE – Em 1940, duas crianças do povo indígena Krahô encontram na escuridão da floresta um boi perigosamente perto da sua aldeia. Era o prenúncio de um brutal massacre, perpetrado pelos fazendeiros da região. Em 1969, os filhos dos sobreviventes são coagidos a integrar uma unidade militar, durante a Ditadura brasileira. Hoje, diante de velhas e novas ameaças, os Krahô continuam a caminhar sobre a sua terra sangrada, reinventando a cada dia infinitas formas de resistência. (VIA EMBAÚBA FILMES)
CRÍTICA – A CASA DE VIDRO
Por Eduardo Carli
Mesclando poesia visual, registro etnográfico e manifesto sócio-político, A Flor do Buriti (Brasil/Portugal, 2023, 125min) é mesmo um “filme belo e envolvente, que combina documento e ficção, celebração e luta, memória e futuro”, como escreveu José Geraldo Couto no site do IMS. “O que se vê ali é o dia a dia de uma aldeia krahô, com seus afazeres, seus rituais, suas conversas e brincadeiras, mas tudo isso permeado pelas ameaças de invasão de seu território e pelas lembranças de lutas passadas, incluindo o trauma do massacre perpetrado contra a etnia por fazendeiros em 1940.” (1)
Co-dirigido pela brasileira Renée Nader Messora e pelo português João Salaviza, o filme vem sendo consagrado em festivais internacionais: recebeu o prêmio de melhor elenco no Festival de Cannes – Mostra Un Certain Regard (onde a equipe protestou contra a PL do Marco Temporal alertando “que o futuro das terras indígenas no Brasil está sob ameaça”) e venceu também como melhor filme em Florença (Itália) no Dei Populi.
Como informa a matéria do portal G1, “o filme, que fala da resistência do povo Krahô do norte de Tocantins, é fruto de uma colaboração de muitos anos dos diretores com a comunidade indígena de Pedra Branca. Em 2017, os diretores venceram o Prêmio Especial do Júri, na mesma mostra, com ‘A Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos’, também sobre os Krahô.” (2)
Para além de abrir janelas fílmicas para que possamos observar e escutar os ritos e atos cotidianos do povo Krahô (saiba mais sobre ele no site do Encontro de Culturas ou no PIB/ISA), A Flor do Buriti é uma obra de pertinente significado político. Expressa uma época sinistra, no Brasil desgovernado pelo bolsonarismo e seu arqui-aliado (o agronegócio), pintando com fortes tintas a oposição entre os cerca de 4.000 habitantes do território e as hordas de invasores, empoderados durante a presidência agrofascista de Seu Jair.
Em uma cena emblemática, o casal Krahô está num ônibus, saindo do Tocantins rumo a um protesto em Brasília, e a câmera foca um imenso outdoor, pago pelos latifundiários agrofascistas, em apoio ao criminoso ainda impune que, para além do genocídio pandêmico que causou mais de 400.000 mortes evitáveis, foi um dos mais atrozes violadores dos direitos dos povos originários que já ocupou o cargo supremo do Poder Executivo.
A memória do massacre de 1940 assombra o presente dos Krahô, invadidos por todo lado por um agrofascismo que saiu do armário e que parece seguir a cartilha do ex-ministro Salles de “ir passando a boiada”, ainda que produza no processo a transformação de uma terra sagrada (para os povos indígenas) em uma terra sangrada.
A poesia visual e um certo acento onírico marcam esta obra que merece ser estudada no âmbito das estéticas indígenas no audiovisual: como bem destacou Carlos Alberto Mattos, um dos destaques da obra é a psicologia e o mundo sonhado das crianças, sobretudo de Jotát: “desde que instou o irmão a atirar uma flecha numa rês extraviada para que ela não destruísse as plantações da aldeia, a pequena Jotát tem sonhos perturbadores. Os tempos se confundem deliberadamente, visando talvez dar conta de uma cosmogonia própria dos indígenas. A ficção serve aqui como canal de acesso a uma realidade documental. Assim é que os krahô se assumem como atores para encenar o enfrentamento de traficantes de animais silvestres e a resistência contra colonos que tentam invadir suas terras, assim como uma série de cenas domésticas.” (3)
Uma guerra demográfica também se escancara: se, através de chacinas e invasões, roubos de madeiras e araras, os agrofascistas tentam forçar seu predominio em área protegida, em contraposição os Krahô defendem-se com resiliência, com seus curumins de arco-e-flecha, seus pajés repletos de rituais de cura com plantas, sem falar na insistência em procriar (ainda a distante de qualquer assepsia hospitalar).
Um dos mais relevantes segmentos do filme é a mobilização em Brasília que motiva alguns Krahô a uma jornada quase épica, inspirados em larga medida pelo chamado convocatório de Sonia Guajajara e da APIB (dentre outros líderes e movimentos). Ainda que alguns na assembléia d’aldeia menoscabem a eficácia de levar um “documento” à capital. A obra sublinha assim a agência política e cidadã das etnias indígenas brasileiras em consonância com outros filmes de Vincent Carelli (Martírio), Luiz Bolognesi (Ex-Pajé, A Útima Floresta) e Rodrigo Siqueira (Índio Cidadão?).
Para além disto, destaco ainda a figura do boi, que assombra os Krahôs: o gado é a marca do agrofascismo colonizador; o roubo de terras se dá pela forçosa imposição dos animais por fazendeiros mercadores de carne e laticínios. Mais um sinal dos tempos: se o eleitorado de extrema-direita que votou em Bolsonaro em 2018 e 2022 é chamado metaforicamente de gado por nós que nos opomos resolutamente a esta política bolsonarente – racista, machista, homofóbica e ecocida – o fato desvelado por A Flor do Buriti é que o problema do gado é mais amplo que apenas o tamanho do eleitorado do Coiso.
O gado literal em terra brasilis é um assombro pelo seu tamanho – mais cabeças de gado do que de gente povoam o Brasil (segundo pesquisa do IBGE, em 2021 havia no país 224,6 milhões de cabeças de vacas e bois, em contraste com uma população de cerca de 215 milhões de seres humanos) – e pelo fato de ser tangido por um agrofascismo dos mais truculentos do mundo. O filme insufla resistência e resiliência em nossos peitos, às vezes escassos de fôlego, para que sigamos em busca de um futuro que só será respirável se souber ter a sabedoria de não descartar o que é ancestral.
Visto no CineCultura Goiânia em 17/07/2024
REFERÊNCIAS
(1) COUTO, J.G. Memória do Futuro. URL: https://ims.com.br/blog-do-cinema/a-flor-do-buriti-e-ainda-temos-o-amanha-por-jose-geraldo-couto/
(2) G1. Longa ‘A Flor do Buriti’, que retrata a resistência de indígenas brasileiros, é premiado em Cannes. URL: https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2023/05/27/a-flor-do-buriti-filme-que-retrata-a-resistencia-de-indigenas-brasileiros-e-premiado-em-cannes.ghtml
(3) MATTOS, C. A. Memória Persistente de Um Massacre. URL: https://carmattos.com/2024/07/06/memoria-persistente-de-um-massacre/
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Publicado em: 18/07/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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